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AS DIVERSAS VERSÕES

No conhecido versículo do Salmo 116.15 as mais diversas versões em português trazem textos bastante diferentes. As versões variam. Por isso, muitos leitores acabam ficando cheios de dúvidas sobre qual tradução é a correta. Se abrirmos as versões bíblicas mais conhecidas, evangélicas e católicas, encontraremos o seguinte:

Preciosa é à vista do SENHOR a morte de seus santos. (Almeida Corrigida)
Preciosa é aos olhos do SENHOR a morte de seus santos. (Almeida Atualizada)
É custosa aos olhos de Iahweh a morte dos seus fiéis. (Bíblia Jerusalém)
É preciosa aos olhos do Senhor a morte de seus fiéis. (CNBB)
O Senhor Deus sente pesar quando vê morrerem os que são fiéis a ele. (NTLH)
O Deus Eterno fica muito triste quando morre alguém do seu povo. (BLH)
O SENHOR vê com pesar a morte de seus fiéis (Nova Versão Internacional)

A dificuldade prática para muitos cristãos é que esse versículo tem sido tradicionalmente utilizado em contextos fúnebres para consolar pessoas enlutadas. O fato é que, muitas vezes, o texto é interpretado como se estivesse falando de uma espécie de “recepção divina ao salvo que passa para a vida eterna”. Será que isso está correto?

O CONTEXTO DO SALMO 116

O contexto do salmo é facilmente identificável. O texto fala de um homem a quem Deus livrou da morte. Agradecido, ele vai ao templo e cumpre a promessa feita ao SENHOR. Esse salmo de gratidão relata a luta do salmista com a morte (1-4), declara a bondade e a misericórdia do SENHOR (5-7), comprovada pela forma como ele escapou da morte (8-11). Muito feliz, o salmista oferece o sacrifício prometido (12-14) e expressa sua dedicação a Deus, convocando o povo ao louvor do SENHOR (15-19). Para entender o versículo 15 precisamos entender que seu texto deve ser interpretado à luz desse contexto, especialmente do que vemos nos versículos 2-3 e 8-9, isto é, o livramento da morte.

A RAZÃO DAS DIFERENTES TRADUÇÕES

Uma rápida observação nas diferentes versões revelará que elas estão divididas em dois grupos. As versões tradicionais de Almeida e as principais versões católicas são muito semelhantes. A diferença é que nas versões católicas o termo hebraico qadôsh foi traduzido por “fiel” e não por “santo”, para evitar a possível confusão do leitor. Não há dúvida de que a palavra se refere ao indivíduo do povo de Deus que está em aliança com ele. Já as versões evangélicas contemporâneas, como a Nova Versão Internacional, a Bíblia na Linguagem de Hoje e sua versão revisada, a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, trazem outra tradução.

O foco do problema de tradução está na palavra hebraica yaqar, cujo significado literal é “ser pesado”, tendo adquirido o sentido de “precioso, caro”. A palavra é usada para se referir a pedras preciosas (Sl 36.7). A pergunta que precisa ser feita é qual é o significado do termo no Salmo 116.15. A morte dos santos, ou fiéis, é preciosa para Deus? Em que sentido? O que o texto de fato está ensinando?

Quem lê o texto conforme as versões mais antigas, pode chegar a duas possibilidades:

  1. Que o SENHOR gosta da morte dos seus santos. A morte é algo precioso, caro, desejável. Seria esse o sentido do texto? É claro que não, pois isso não faz sentido, e dá ideia de um Deus que parece ter prazer no sofrimento humano.
  2. Que o SENHOR está presente e cuida do seu fiel, na hora da morte. Essa é a interpretação mais comum. No entanto, essa maneira de entender não tem muita relação com a palavra “preciosa”. A versão popular é mais intuitiva do que exegética.

Devemos concluir que apesar de muito comuns essas abordagens não refletem o significado do versículo no seu contexto original.

A outra alternativa, das versões contemporâneas, principalmente da NVI e da NTLH, é o “SENHOR vê com pesar a morte de seus fiéis”. Como se chega a tal tradução? Por que um texto tão diferente? Aqui a palavra yaqar é vista no seu sentido de “algo de alto custo”, isto é, “precioso”. Isso significa que para Deus a morte de um fiel é algo que custa muito. A tradução de Toombs, por exemplo, capta bem a ideia: “O SENHOR não é indiferente ao fato de seus fiéis serem ou não mortos”. Numa tradução bem contemporânea, poderíamos dizer que para o SENHOR a morte de seus fiéis “não passa em branco”. A morte de alguém que é fiel ao SENHOR recebe a atenção de Deus, assim como uma pedra preciosa atrai o olhar de alguém. Portanto, apesar da opção estilística “vê com pesar” não ser perfeita, a ideia fundamental corresponde ao sentido do original. Na verdade, essa opção de tradução está correta, e há duas razões para isso:

  1. Contextual. O contexto do salmo revela a gratidão de um adorador que foi salvo da morte, e não de alguém que passou para a eternidade. O autor fala da morte com enfoque negativo. Não é uma experiência desejável nem pelo autor nem por Deus.
  1. Teológica.Muitas pessoas entendem o texto bíblico de maneira incorreta, lendo o Antigo Testamento como se fosse o Novo Testamento. A verdade é que o Antigo Testamento discute muito pouco a vida depois da morte. Aquilo que conhecemos como escatologia individual só é plenamente desenvolvida no Novo Testamento. Portanto, é muito improvável que um salmo esteja falando do pós-morte, pois o enfoque dos salmos e do Antigo Testamento em geral é a vida na terra.

Apesar de muito conhecida, a versão tradicional do Salmo 116.15 não reflete o sentido do texto original. As versões contemporâneas estão corretas.

Luiz Sayão

A Reforma Protestante, que mudou a história da Europa do século 16, foi um retorno à Bíblia. Sola Scriptura foi o grito de Lutero, acompanhado por Calvino, Zuínglio e outros da grande reforma religiosa. Essa herança construiu história, na Europa Central e Setentrional, na América do Norte, e mais recentemente no Brasil e na América Hispânica.


Na história da Reforma, porém, pouco se conhece de como os reformadores puderam ter acesso outra vez ao texto bíblico a partir das línguas originais. Rompendo com a tradição medieval e o domínio do latim, os reformadores tiveram que pesquisar as Escrituras além da Vulgata Latina, buscando o texto mais próximo do original possível. O estudo do Novo Testamento Grego e da Bíblia Hebraica teve prioridade na tradição protestante desde o início. Como foi possível estudar e entender o hebraico antigo? Era necessário aproximar-se dos judeus e do judaísmo.


Essa proximidade pouco comentada, que contrasta com a caminho antissemita da Cristandade, marcou história e há muito produziu saudável proximidade entre cristãos e judeus. O movimento é conhecido como filossemitismo. A busca do texto hebraico do AT fez de eruditos judeus mestres de reformados. Estudiosos da época como Johannes Reuchlin confirmam como as obras e o conhecimento de hebraístas como David Kimhi e Elias Levita foram fundamentais para o aprofundamento nas Escrituras Hebraicas. Isso foi reconhecido até mesmo pelo próprio Martim Lutero. Essa proximidade e terreno comum criaram uma certa simpatia entre as comunidades judaicas e protestantes, o que se verá no continente americano posteriormente. Os Estados Unidos tornam-se um exemplo dessa boa convivência.

Os reformadores entenderam que o edifício teológico, eclesiástico e religioso construído no contexto da época tinha se afastado muito da proposta original do cristianismo. O movimento, portanto, era de um retorno às raízes, da primazia da Palavra, da valorização do cristianismo primeiro. E não há como fazer isso sem redescobrir o hebraico, a língua, a cultura e a cosmovisão presentes no texto sagrado. Mas, a pergunta deve ser feita: O retorno da Reforma foi suficiente? O mundo greco-romano erigido sobre a tradição primeira foi suficientemente afastado para que se pudesse encontrar as raízes dos primeiros discípulos de Jesus? Cinco séculos depois a pergunta ainda é válida, principalmente em nossa realidade brasileira, quando a confusão reina nos ambientes evangélicos ligados Antigo Testamento e a elementos judaicos. A igreja está confusa: vai do antissemitismo explícito ao movimento judaizante irrefletido e místico. Como lidar com a questão? Que caminho devemos tomar? Enquanto muitos na igreja brasileira reproduzem um universo mágico, comum em nossa cultura, apropriando-se de símbolos judaicos, ao mesmo tempo, a distância da cosmovisão hebraica e bíblica prevalece no contexto evangélico. Já que a maioria dos evangélicos brasileiros não encontra plena identidade nas tradições protestantes europeias e norte-americanas, a busca da identidade evangélica nacional revestiu elementos de nossa cultura brasileira de símbolos judaicos. Infelizmente, o caminho tem se mostrado pouco promissor. Diante desse quadro, vemos que é tarefa necessária do protestantismo brasileiro (e mundial) redescobrir o mundo hebraico que fundamenta a Escritura, nossa Regra de Fé. A Reforma não foi completa. Muito do mundo grego e do império romano obscureceram aquilo que definia e delineava o cristianismo primitivo, a comunidade dos discípulos de Jesus (Yeshua).


A elaboração mais recente da teologia bíblica e os estudos comparativos entre a cosmovisão hebraica e a visão de mundo grega, tem sido útil para entender a questão. De fato, a maneira grega de ser e pensar moldou muito da alma ocidental, e também nossa teologia e cristandade. Parece que ainda hoje nossa teologia cristã do ocidente tem mais sintonia com Platão e Aristóteles do que com Moisés, Amós e João. Nossa referência, muitas vezes, parece ser Roma e Atenas, e não Jerusalém. Chegou a hora de caminhar novamente na direção de um filossemitismo e um filo-hebraísmo. Há muito a ser aprendido, e esse entendimento é especialmente valioso. Alguns estudiosos desenvolveram considerações muito úteis para o entendimento da questão. Destaque para o norueguês Thorleif Boman, autor de Hebrew Thought Compared with Greek (W.W. Norton & Company, New York, 1960), o estudioso francês Claude Tresmontant, autor de Essai sur la pensée hébraïque (ÉditionsduCerf, Paris, 1953), e o norte-americano Max Kadushin, com as obras Organic Thinking (Jewish Theological Seminary, New York, 1938) e The Rabbinic Mind (Jewish Theological Seminary, New York, 1952). O trabalho mais recente é o do israelense Yoram Hazony, The Philosophy of Hebrew Scripture (Cambridge: Cambridge University Press, 2012).


O fato é que o mundo grego e o hebraico são distintos e, às vezes, bem opostos. Talvez, a primeira distinção importante seja a priorização judaica do tempo. Os hebreus construíram uma visão de mundo na qual o tempo é a dimensão fundamental, já a perspectiva helênica valorizava o espaço. Há muitos vocábulos na Bíblia Hebraica para referir-se ao tempo. O foco é o agir de Deus na história humana, categoria predominante do pensamento bíblico. Essa preponderância do tempo desdobrou-se no valor da Palavra. Por isso, para o judeu era importante ouvir (Dt 6.4), enquanto que, em geral, para o grego, ver sempre foi essencial. Esse era o mundo das esculturas e da arte visual. Ideia e teoria, por exemplo, são palavras nossas que vêm do grego e significam ver. Na visão grega de mundo há um certo desprezo da linguagem, vista como referência inferior. Platão, por exemplo, buscava a ideia pura, pois só através dela seria possível alcançar a verdade. A abstração aristotélica também não se distancia disso. Na Grécia antiga dedicar-se à contemplação e ao mundo das ideias era considerada a mais nobre atividade. No mundo hebraico, a Palavra é tudo. Davar (palavra) também significa coisa e fato. A Palavra une e faz referência tangível à realidade. Deus cria o mundo falando. Sua revelação é o seu NOME. Sua verdade é mediada por sua Palavra. O próprio Jesus é o VERBO de DEUS (Jo 1.1).


Os gregos são os pais da filosofia. A busca pela “essência” das coisas por meio da razão marcou o gênio helênico. O mundo hebraico é diferente. A realidade é complexa e é criação de Deus. O homem deve reverenciar o Criador e viver em santidade. A criação é bela e não é inferior por ser material. A realidade integrada e complexa deve ser celebrada à luz da revelação do Criador. Por isso, a abstração marca o mundo grego, mas, a Bíblia Hebraica não é sistemática, filosófica ou teológica. São textos vivos e dinâmicos que delineiam a relação do Criador com o homem. ThorleifBoman, com razão, afirma: A mente hebraica é “dinâmica, vigorosa e apaixonada, e de vez em quando até explosiva; enquanto a mentalidade grega é estática [harmônica], serena, moderada”. Por isso, o hebraico fala concreto enquanto o grego pensa abstrato. A ideia pura para o grego é o caminho para alcançar a verdade, por isso, lidar com a vida é usar abstrações, modelos que supostamente organizam a realidade. Essa abstração pressupõe um movimento de distanciamento da realidade, de construção de um mundo que não toca o cotidiano. Já a linguagem bíblica é concreta e sensorial; em vez de abstrações, descreve a experiência vivencial do homem em sua relação com Deus. Lutero chamou isso de “energia especial” no vocabulário bíblico. Essa linguagem sensorial dá vida, movimento e um colorido especial ao texto bíblico e à literatura hebraica antiga. Por exemplo: irar-se é “arder as narinas”, ver é “levantar os olhos”, o orgulhoso é aquele que tem “dura cerviz”, revelar ou apresentar algo é “falar aos ouvidos”, preparar-se é “vestir os lombos”.


Com esse enfoque, a realidade bíblica é dialética, em oposição ao reducionismo lógico aristotélico, que tanto tem dominado a teologia. O texto sagrado não se incomoda em afirmar realidades aparentemente opostas (complementares). Deus é um ser infinito, mas pode encarnar num bebê em Belém da Judeia. Deus pode ser um e três ao mesmo tempo. A Bíblia é Palavra de Deus e foi escrita por homens. Somos salvos pela fé e ao mesmo tempo por obra exclusiva do Espírito Santo. Deus é totalmente soberano e nós somos livres e responsáveis por nossos atos. Enquanto o racionalismo limitado conduz à fragmentação e à polarização do texto bíblico, o enfoque dialético hebraico permite a convivência tranquila e complementar de vários temas importantes das Escrituras. Um realinhamento “hebraico” nos daria mais humildade, menos desejo de “dominar o texto” e mais tolerância e fraternidade. Precisamos enxergar e viver a vida, sob a perspectiva hebraica, numa atitude de encantamento diante do sagrado e do divino, e aceitar que Deus é simplesmente inefável, constatando que a realidade é entrelaçada e complexa. A Bíblia hebraica mantém muitas tensões, sem que isso traga nenhum prejuízo a Deus ou ao mundo criado. Na história do Êxodo, quando Moisés diz ao faraó que deixe o povo ir adorar a Deus, o faraó endurece o coração, mas também diz que Deus endurece o coração do faraó. Nenhuma crise para o pensamento hebraico. Grande complicação para o mundo grego.
É útil observar alguns contrastes fundamentais entre as duas perspectivas aqui:

Se quisermos construir uma Reforma plena, um retorno completo às Escrituras, por meio de uma teologia e de uma igreja mais viva e apaixonada por Deus e sua graça, e se desejarmos experimentar uma intensa sintonia entre reflexão e espiritualidade e com humildade crescer em tolerância e união em Cristo, é preciso revisitar o mundo hebraico, a matriz fundamental que estrutura e fundamenta o pensamento bíblico. Caso estejamos prontos, quem sabe tenhamos uma nova Reforma” Quem sabe venhamos a redescobrir o lado hebraico da Reforma! Que o Eterno nos abençoe.

Luiz Sayão

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