Amor de si mesmo nos leva à humildade e ao
reconhecimento de quem de fato somos
Chegando um dos escribas, tendo ouvido a discussão entre eles, vendo como Jesus
lhes houvera respondido bem, perguntou-lhe: Qual é o principal de todos os manda-
mentos? Respondeu Jesus: O principal é: Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o
único Senhor! Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a
tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força. O segundo é: Amarás o
teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.
[Marcos 2.28-31]
Na mitologia grega, Narciso é um homem de rara beleza que, apaixonado
por sua imagem, a busca em todos os lugares, em espelhos de bronze
polido, no curso das águas e nas fontes. Certa vez, ao contemplá-la em
um lago, fica encantado com sua própria beleza. Querendo se juntar a
ela, lança-se na água e se afoga. Os antigos entenderam que uma busca
doentia por sua própria imagem inevitavelmente conduziria à morte.
A Psicologia irá dizer, em relação ao ser humano, que uma vez assegu-
radas suas necessidades
essenciais como um teto
para morar e o suficiente
para se alimentar, o desejo
mais profundo é o de ser
reconhecido, saber que é
alguém que existe no olhar
do outro. Assim, a maior pobreza para alguém seria a invisibilidade aos
olhos de um próximo.
Lembro-me que, certa vez, uma pesquisa feita com estudantes de Ensino
Médio perguntava o que eles gostariam de ser no futuro. Dois terços
escolheram: ser alguém conhecido. Todavia a Bíblia nos revela que, para
Aquele que mais importa sobre todas as coisas, nós já somos vistos e
reconhecidos: ... eu o chamei pelo nome ... visto que você é precioso e
honrado à minha vista ... [Isaías 43.1;4].
Conquista e graça
A diferença entre o amor próprio de Narciso e o amor de si mesmo
demonstrado na Bíblia, é que o primeiro é uma conquista e o segundo
uma graça recebida. Se alguém não recebe autoestima como um pre-
sente, só pode procurá-la em suas obras e desempenho. Nesse caso, o
relacionamento com os outros está sujeito à busca de si, e não do outro.
Dessa perspectiva, Stan Rougier tem razão em nos alertar: Se você não se
ama, conte para o seu vizinho rapidamente. Ele terá que se proteger contra
o seu amor. Você só pode amar se souber que é amado, caso contrário,
seu amor corre um forte risco de ser patológico. É o caso de pais que
amam tanto os filhos que os sufocam em torno de seu amor e os impe-
dem de se emancipar, enquanto amar, na verdade, é também consentir
em se distanciar para que possam aprender a exercer a sua liberdade.
Quando o amor próprio é fruto de uma conquista, é evidência do
orgulho; quando é recebido como um presente imerecido, é uma marca
de humildade. É por isso que é importante dizer às nossas crianças que
elas são amadas, não por seus méritos, mas por aquilo que são, de
maneira bastante simples.
Se para o filósofo Descartes o ser humano é definido em si mesmo pelo
próprio ato do pensamento ativo quando afirmou Penso, logo existo,
poderíamos biblicamente propor a seguinte fórmula: sou amado, logo
sou. O amor de si mesmo, é atestado e acolhido na graça de um Deus que
nos ama. É a coragem implícita no ato de aceitar a si mesmo, apesar do
fato de saber-se inaceitável diante da perfeição do próprio Deus. O Novo
Testamento, a partir dos Evangelhos, anuncia esse amor incondicional de
Deus dirigido a cada pessoa. O apóstolo Paulo continua a repeti-lo: Você é
o santuário de Deus... você foi lavado, você foi santificado, você foi justifi-
cado... você foi resgatado por um alto preço [1 Coríntios 3.16; 6.11; 6.20].
Amar a si mesmo é receber essa palavra no mais profundo do seu
ser, a fim de se tornar o que já se é diante de Deus.
André Filipe de Farias Sass
É pastor auxiliar da PIB em Vila Nova Cachoeirinha (Capital, SP),
Doutorando em Filosofia Sociológica (EHESS PARIS) e Doutorando
(IPT-PARIS), Bacharel e Mestre em Teologia. Professor de Filosofia e
Ciências Sociais na Teológica e pesquisador associado ao Fonds
Ricoeur (Paris-FR) e representante no Brasil da Associação Croix
Huguenote (Montpellier-FR).
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“A diferença entre o amor próprio
de Narciso e o amor de si mesmo
demonstrado na Bíblia, é que o
primeiro é uma conquista e o se-
gundo uma graça recebida.”